quinta-feira, 2 de agosto de 2007

O centenário de Plínio Salgado

Por Miguel Reale


O silêncio da imprensa e de todos os meios de comunicação a respeito do centenário de nascimento de Plínio Salgado demonstra quanto pode a força do preconceito ideológico, capaz de obscurecer o real valor de nossos homens mais representativos.

Porque Plínio Salgado, visto geralmente apenas sob o prisma da falsa "vulgata integralista" disseminada por esquerdistas de todos os naipes, reuniu, como bem poucas personalidades, o que ha de mais característico, positiva e negativamente, na cultura brasileira.

Em primeiro lugar, como tantos outros nossos patrícios eminentes, ele não cultivou seu espírito nos bancos universitários, mas como autodidata, influenciado por eventuais encontros intelectuais. Isso não obstante, acabou assemelhando notável saber nos domínios da filosofia, da ciência política, da sociologia e das letras.

A sua formação inicial levou-o naturalmente ao jornalismo, merecendo lembrança o fato de que foi Menotti Del Picchia quem teve a perspicácia de transferi-lo da revisão do Correio Paulistano para o quadro dos articulistas, aonde iria se revelar um dos mais lúcidos intérpretes da vida política nacional, apontando para novos rumos, isto, paradoxalmente, nas páginas do jornal oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), máxima expressão da tradição conservadora.

Ainda não foi feito um estudo sobre Plínio Salgado jornalista, desde o Correio até A Ofensiva, passando pelo magnífico "intermezzo" de A Razão.

Quando tal pesquisa for elaborada, ter-se-á a imagem de um dos mais completos e penetrantes mestres do jornalismo pátrio. A repercussão de suas idéias foi tão grande que, quando o capitão João Alberto assumiu a interventoria de São Paulo, após a Revolução de 1930, fez questão de conhecer Plínio Salgado, cujos artigos eram lidos, em Buenos Aires, com entusiasmo pelos antigos componentes da Coluna Prestes! Por esse motivo foi confiada a Plínio Salgado a redação do Manifesto da "Legião Revolucionária" de Miguel Costa, fato este que se procura ocultar.

Foi por divergir da corrente marxista, que passou a prevalecer nas hostes revolucionárias, que Plínio lançou o tão falado e hoje pouco conhecido, Manifesto de Outubro, documento básico da Ação Integralista Brasileira. Quem, sem mente prevenida, examinar esta proclamação, lançada em 1932, verá, com facilidade, que, mais do que se inspirar no fascismo (do nazismo não há o que falar, pois, na época, pouco significava), o meu conterrâneo (somos ambos de São Bento do Sapucaí-SP) se baseava, quanto à compreensão do Brasil, nos ensinamentos de Alberto Torres, Euclides da Cunha e Oliveira Viana; em política, inspirava-se na teoria dos "governos fortes" então aceita até mesmo por grandes mestres da democracia, como Churchill; e, em matéria social, seguia a "doutrina social" da Igreja Católica.

Nota-se, aliás, que ao entrar para Ação Integralista, em 1933, desde logo marquei minha posição pessoal, preferindo desenvolver as teses do sindicalismo oi do corporativismo democrático, exposto, entre outros, por Mirkine Guétzevitch, o que demonstra que havia várias vertentes no Integralismo erroneamente visto como uma ideologia maciça. Pois bem, apesar das divergências, foi Plínio quem recomendou meu livro O Estado Moderno a José Olympio, que estava começando em São Paulo sua estupenda carreira de editor, o que demonstra o espírito de tolerância do líder integralista, que também soube respeitar as idéias divergentes de outros companheiros, como Gustavo Barroso, San Tiago Dantas ou Olbiano de Melo...

A meu ver, a vultosa bibliografia de Plínio salgado, objeto de bem raras analises serenas, representa um dos mais significativos filões do pensamento político brasileiro, com páginas duradouras, com as de Psicologia da Revolução, que transcendem as conjunturas ou os motivos que episodicamente as inspiram.

Mas acima de suas concepções políticas, cujo estudo demandaria longas considerações, inclusive, inclusive no plano da Política Comparada, o que desejo ressaltar, neste artigo ditado tanto pela saudade como pelo dever da verdade são os altos méritos de Plínio Salgado como escritor sempre atento às renovações literárias, como o demonstrou com sua participação na Semana da Arte Moderna, fato que também geralmente se oculta.

No entanto, seu romance O Estrangeiro, de 1926, é fruto magnífico da "Semana", tendo sido recebido com imenso entusiasmo por críticos rigorosos como Tristão de Athayde e Agripino Grieco, e por escritores consagrados como Monteiro Lobato. É obra que não se notabiliza apenas pelos novos valores literários revelados num estilo imagético e fotográfico, mas também por ter sido o primeiro romance de cunho social publicado no Brasil, anos antes de A Bagaceira de José Américo de Almeida (1928) ou de O Quinze de Rachel de Queiroz (1930).

Nesse seu melhor romance surge São Paulo com toda a riqueza de seus contrastes étnico-culturais com classes sociais que decaem e outras que emergem, até se converter numa civilização própria, marcada pela unidade pluridimensional de seus bens existenciais. Não exagero afirmando que nenhum livro revela tão vivamente o amanhecer da "cultura paulista" enquanto, como num coro grego, se ouvem comentários de Ivan, a voz que vem de fora. Por outro lado também em 1928, Plínio publicou a Anta e o Curupira, escrita por ele em parceria com Cassiano Ricardo e Menottí del Picchia.

O Esperado, Cavaleiro de Itararé e a Voz do Oeste são outros seus romances de inegável valor estético, muito embora até certo ponto os comprometa literalmente o deliberado propósito de fixar novos rumos políticos sociais, visando atingir a tão falada "identidade nacional", apresentada por Plínio como resultado de uma revolução cultural embebida de nossas próprias circunstâncias, e não em função de figurinos de Moscou, de Roma ou de Nova York.

Lugar à parte merece sua Vida de Jesus, onde os valores do cristianismo são captados numa visão artística tão espontânea e expressiva que prende e seduz também os que não são crentes, projetando-se reconhecidamente na angiologia universal.

Não alimento a esperança de que meu pronunciamento possa fazer justiça ao grande paulista e brasileiro que foi Plínio Salgado, pois só o tempo o fará; mas ele por certo pensava, como Siqueira Campos, que tanto admirava, que "da Pátria nada se espera, nem mesmo compreensão".


(Artigo publicado em "O Estado de São Paulo" a 25 de fevereiro de 1995)

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