sábado, 25 de agosto de 2007

Entrevista concedida pelo Prof. Reale ao Jornal da USP


A seguinte entrevista foi realizada em 2000, quando eram celebrados os noventa anos do insigne autor de "O Estado Moderno", de "Teoria do Direito e do Estado" e de "Pluralismo e Liberdade".


Jornal da USP — Professor, o senhor é internacionalmente conhecido por sua Teoria Tridimensional do Direito. O que diz essa doutrina?

Reale — A Teoria Tridimensional do Direito é uma interpretação da experiência jurídica sob vários prismas. Ela surgiu de uma reação contra o formalismo jurídico, que se apresentava sob três formas. Em primeiro lugar, há o formalismo legislativo, ou legislado, no sentido de que se confunde o Direito com o código, o Direito com o diploma legal. Dessa maneira, conhecer Direito se resume a interpretar as leis e aplicá-las, recebendo-se, portanto, algo já pronto e acabado sob a forma de regula júris, de norma de direito. Contra isso havia um segundo formalismo, o formalismo factual, no sentido de que se procurava nos fatos sociais uma ciência jurídica sociológica. E uma terceira orientação tinha um caráter idealista e filosófico, dando importância apenas ao mundo dos princípios e dos valores. Eu reagi contra essa tríplice orientação separada e unilateral. A minha originalidade, digamos assim, consistiu em mostrar que fato, valor e norma são elementos que se dialetizam. A minha formação dialética no campo da filosofia me ajudou a compreender que o Direito não é só norma legal, pois ela pressupõe a vida social concreta e as aspirações axiológicas, valorativas que determinam exigências para o legislador e para o juiz. Aquilo que eu chamei de fato, valor e norma representam três aspectos de uma concreção que é unitária e dinâmica, daí chamar-se Teoria Tridimensional do Direito, que é uma tomada de posição contra compreensões unilaterais da experiência jurídica.

Jornal da USP — Em que livros o senhor expõe essa teoria?

Reale — Em vários deles. Comecei a expor essa teoria em 1940, com a publicação da minha tese, editada com o título Fundamentos do Direito, que foi completada com outro livro, Teoria do Direito do Estado. Desde então fui aperfeiçoando-a e fazendo alterações. É claro que ela não surgiu de repente. Tanto que no começo eu usava a expressão "bidimensional". Em 1945 passei a usar o termo Teoria Tridimensional do Direito, que depois foi o título de um de meus livros.

Jornal da USP — Qual a influência da teoria?

Reale — No próprio projeto do Código Civil está presente essa orientação. Deixou-se de examinar apenas segundo a lei, levando em conta o condicionamento social e histórico. A Teoria Tridimensional do Direito provocou outros movimentos paralelos e mudou a mentalidade do operador do Direito. Chamo operador do Direito porque ele opera como sociólogo, como jurista, como historiador, com um complexo de aspectos e paradigmas.

Jornal da USP — O senhor liderou os trabalhos de elaboração do projeto do novo Código Civil, que está em tramitação na Câmara Federal. Quais as inovações desse novo código?

Reale — O código tem uma visão abrangente, conforme aquilo que se pode dizer a minha tendência à integralidade. É um código que não fez a unidade do Direito privado, mas fez a unidade do Direito das obrigações, civis e comerciais, e alterou a estrutura do código atual, que é muito individualista. O código atual foi elaborado no fim do século passado e promulgado em 1916. Ele reflete a situação do Brasil agrário, em que 70% da população vivia no campo. A grande mudança é a mudança de espírito. De um código individualista passamos para um código social, que leva em conta valores coletivos. É um código que tem um espírito ético de moralidade fundamental, de tal maneira que é dada ao juiz uma grande atribuição de completar e rever as situações. Tanto assim que o código dos consumidores, que leva em conta o direito da sociedade em geral, se inspirou no projeto do Código Civil. A linguagem do novo código não é rebuscada, como a de Rui Barbosa, porque código não é texto para ensinar gramática.

Jornal da USP — Quais outras novidades no novo código?

Reale — Há emendas no Senado atendendo à grande revolução que foi feita na família pela Constituição de 1988. Esta aceitou a orientação do senador Nelson Carneiro, que pregava a igualdade absoluta dos cônjuges e dos filhos. De modo que hoje no código não há diferença entre filho adulterino, incestuoso ou legítimo. São todos filhos com iguais direitos, daí resultando uma série de conseqüências. Há uma igualdade absoluta do homem e da mulher no seio da família, razão pela qual propus que ao invés de "pátrio poder" se passe a falar em "poder familiar", exercido concomitantemente pelo marido e pela mulher ou pela mulher, quando o marido deixa a mulher sozinha com os filhos e vai morar com outra, uma praga que ocorre no Brasil. Quer dizer, o novo código traduz uma revolução social, uma transformação completa. É a Teoria Tridimensional do Direito influindo na visão do direito civil.

Jornal da USP — Como o senhor vê a filosofia que se faz hoje no Brasil?

Reale — A filosofia no Brasil deu um salto muito grande. Em 1949, quando fundei o Instituto Brasileiro de Filosofia, ela era obra de pouquíssimos. Hoje é estudada em todas as universidades brasileiras. A Revista Brasileira de Filosofia, que criei há 50 anos e já soma 188 edições ininterruptas, era praticamente a única do gênero. Mas o mais importante é que se começa a pensar com a própria cabeça. Não se trata mais de um reflexo das influências recebidas. A grande crítica que eu fazia à USP é que ela estava por demais apegada aos textos, sobretudo de filosofias marxistas. Os alunos quase não tinham iniciativa de pensar com a própria cabeça e trazer algo de novo. Mas isso mesmo mudou. A Faculdade de Filosofia trouxe contribuições muito importantes na história das idéias.

Jornal da USP — O que se produz de relevante em filosofia hoje no Brasil?

Reale — A maior expressão da filosofia no Brasil é aquela que está ligada aos movimentos chamados de culturalismo e está baseada na obra de dezenas de pensadores. Ainda agora acaba de sair a segunda edição de uma obra fundamental nesse sentido, Experiência e cultura, de minha autoria.

Jornal da USP — O que é o culturalismo?

Reale — Esse movimento nasce da idéia de que não basta analisar as condições subjetivas do conhecimento, mas também as objetivas e as histórico-sociais, pois tudo aquilo que ocorre acontece num contexto de cultura. De maneira que é preciso indagar do papel da cultura na teoria do conhecimento. É por isso que um dos meus mais recentes trabalhos se chama Teoria do conhecimento e teoria da cultura. A filosofia é a visão integral da cultura, que se especializa em múltiplos setores, e a cultura não é apenas o aprimoramento do intelecto, mas o conjunto de tudo aquilo que o homem realizou no plano material e espiritual através do processo das gerações, daquilo que se chama civilização.

Jornal da USP — Professor, uma dúvida: na década de 30 o senhor participou do movimento integralista?

Reale — Sim, fui um dos líderes do integralismo. Comecei a participar em 1933 e fui secretário nacional de doutrina. O integralismo não tem nada que ver com essa imagem que a esquerda criou por aí, sobretudo a esquerda festiva. O integralismo era um grande movimento nacionalista — e nisso vai uma crítica, porque acho que o nacionalismo está superado. Mas naquela época o Brasil vivia sem ter consciência de sua própria identidade político-social-intelectual. Era um movimento nacionalista que correspondia ao nacionalismo fascista, mas com características próprias, completamente diferente. O fascismo era uma doutrina fechada e o integralismo tinha várias correntes diferentes, num diálogo muito vivo. Eu não concordava com o Plínio Salgado, o chefe nacional do integralismo, porque ele seguia a teoria social da Igreja e eu pregava uma democracia integral corporativa. E o integralismo teve o grande mérito de ser o primeiro partido nacional no Brasil. Antes só havia partidos regionais: o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Democrático Paulista (PDP), por exemplo. Nós achávamos que deveria haver um partido de âmbito nacional. Outro partido nacional era o Partido Comunista, mas este era reflexo da Rússia e era até subvencionado pelos russos. O nosso era um partido nacional nascido de nós mesmos.

Jornal da USP — Mas era um partido de tendências totalitárias.

Reale — Não. De jeito nenhum. Nem o fascismo foi totalitário. O professor Roque Spencer Maciel de Barros publicou uma obra imensa sobre o totalitarismo, O Fenômeno Totalitário, e mostrou que a Itália foi autoritária mas não totalitária, a não ser quando Mussolini acabou prisioneiro de Hitler, no fim da guerra, quando o fascismo se entregou à Alemanha. Quer uma prova? Em 1938, quando estava na Itália, tive contato com Giorgio Del Vecchio, que era judeu e reitor da Universidade de Roma. O Norberto Bobbio, de quem se fala tanto, jamais foi afastado da sua cátedra, apesar de ser judeu e nunca ter sido fascista. De maneira que essa história de confundir fascismo com nazismo é uma tapeação doutrinária.

Jornal da USP — Então fascismo é uma coisa, nazismo é outra e o integralismo no Brasil é uma terceira coisa?

Reale — É uma terceira coisa. O que há em comum é o uso da camisa. Mas nós lutamos muito para saber se tinha que usar a camisa ou não. Nós achamos que era preciso ir até o povo. O integralismo era um partido popular. Os meus companheiros eram operários. Além disso, o integralismo reuniu o que havia de mais fino na intelectualidade da época. Reuniu homens como Goffredo da Silva Teles, Roland Corbusier, Teófilo Cavalcanti, em São Paulo, San Tiago Dantas, Tiago Martins Moreira, no Rio de Janeiro, e Adonias Filho, na Bahia.

Jornal da USP — O Partido Integralista era o que se chamaria hoje de liberal?

Reale — Não. Liberal não era. Na época, liberalismo se confundia com conservantismo. Liberal social sou eu agora, porque o liberalismo tem um outro sentido, mais amplo, mais aberto. Na época, o liberalismo era o nome postiço de um conservador. Nós éramos contra o liberalismo formal, que não resolvia nenhum problema social, só problemas jurídicos e políticos, sem dar importância à problemática social do país. O integralismo era um movimento social.

Jornal da USP — Em 1969, o senhor foi nomeado pelo presidente Costa e Silva para formar a comissão que reviu a Constituição de 1967, que produziu um texto arbitrário.

Reale — Não. Não é isso não. A história é mais complicada. Leia sobre isso no segundo tomo das minhas memórias. O presidente Costa e Silva morreu repentinamente logo depois de a comissão ter feito a revisão, de maneira que a Constituição de 1969 aproveitou o nosso trabalho. Mas ela foi feita por sucessores do Costa e Silva, não por nós. E essa Constituição de 1969 tem muita coisa boa. Não vamos confundir essa Constituição com os Atos Institucionais. Eu escrevi um artigo no Estadão mostrando que a Constituição de 1969, que procurei até rever junto com outros no fim da época militar, era uma Constituição que tinha alguns valores, mas não tinha nenhuma força porque estava subordinada aos Atos Institucionais, esses sim, violentos, arbitrários. A Constituição não mandava nada. Quem mandava eram os Atos Institucionais. Os Atos é que eram a verdadeira Constituição. Há muita ignorância a respeito do assunto.

Jornal da USP — Em 1974 o presidente Médici nomeou o senhor para o Conselho Federal de Cultura.

Reale — Mas sabe com quem eu fui nomeado? Com Afonso Arinos de Melo Franco, Gylberto Freire, Pedro Calmon, Raymundo Faoro e outros. Quem dera o governo atual fizesse um conselho com homens dessa estatura. O conselho nunca deu importância ao governo. Tinha independência. Homens como Freire, Afonso Arinos, Pedro Calmon e eu não somos subordinados a nada. Somos subordinados a nossas idéias e às nossas convicções. De maneira que corrija aí a sua ligação, que está errada.

Jornal da USP — É que eu fiquei com a impressão de que talvez o senhor tivesse colaborado com o regime militar mais do que se deveria esperar de um grande luminar do Direito e de um professor da USP.

Reale — Não. Eu só colaborei no Conselho Federal de Cultura e no Conselho Administrativo do Estado. Nesse conselho todo mundo colaborava. Quem não colaborava era só a esquerda. Todo mundo colaborava com o regime militar. Colaborava no sentido de realizar obras culturais. Mas além da obra cultural não havia colaboração nenhuma.

Jornal da USP — Professor, o senhor se formou pela Faculdade de Direito em 1934, ano da fundação da USP. Foi professor e, por duas vezes, reitor. O que o senhor citaria como suas grandes realizações nessa longa carreira?

Miguel Reale — Quando exerci o cargo de reitor pela primeira vez, em 1949, havia uma desigualdade entre os professores, que estavam divididos em três categorias, com três faixas salariais. Isso era um absurdo. Com o apoio do Conselho Universitário, equiparei os salários de todos os professores. Parece-me que essa foi uma contribuição importante, porque dava nascimento à USP como uma unidade orgânica. Nessa ocasião, ocorreu-me a idéia de que, no Brasil, a universidade não pode se limitar a dar aulas e realizar conferências e cursos. Por isso passei a promover serviços externos, sempre de natureza cultural. Era o início das atividades de prestação de serviços à comunidade, que constitui hoje a terceira finalidade do instituto universitário.

Jornal da USP — E na sua segunda gestão na Reitoria, no início dos anos 70?

Reale — Nesse segundo mandato, a minha atuação foi muito complexa. A USP implantou uma profunda reforma destinada a suprimir as cátedras e substituí-las por departamentos. Ela previa também a reorganização das unidades da USP, com a distinção fundamental entre institutos, com maior cunho de pesquisa, e faculdades, destinadas a uma atuação, digamos, mais profissional. A antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi desmembrada. Foi muito importante esse desmembramento porque a Faculdade de Filosofia era reflexo de um enciclopedismo positivista. Ela estava perdida num conjunto disforme, pois o que tem a ver química com matemática, por exemplo? As ciências positivas saíram da faculdade e compuseram novas unidades autônomas. Naturalmente isso se fez com muita resistência.

Jornal da USP — Que tipo de resistência?

Reale — Havia muitos professores que não estavam de acordo com a reforma. Uma resistência muito grande foi oposta à supressão das cátedras. Antigamente o catedrático era o "dono" da Universidade e tinha um auxiliar que ficava na dependência dele. De acordo com a reforma aprovada, instituí as carreiras e coloquei nos departamentos mais de 4 mil professores. A criação dos institutos, como o ICB — Instituto de Ciências Biomédicas, tirava da Faculdade de Medicina o curso de anatomia e outras funções. Chegou ao ponto de haver até um movimento separatista, promovido pelos médicos e professores da Faculdade de Medicina, que queriam transformá-la numa faculdade autônoma. Foi uma grande dificuldade afrontar essa resistência e superá-la.

Jornal da USP — Hoje se discute que essa estrutura departamental está superada.

Reale — Quais são os argumentos que aduzem? Os departamentos foram criados da maneira que era possível na época. O que houve foi uma falta de adaptação ao espírito dos departamentos. Há muitas vaidades que desaparecem nos departamentos, de tal maneira que os professores se impõem pela sua cultura e pela sua dedicação. Mas há professores que querem o cargo, querem, no fundo, restabelecer de outras formas as antigas cátedras, numa tradição de mandonismo que é bem compatível com a tradição brasileira. Os departamentos têm de ser aperfeiçoados. Eles podem ser, às vezes, até desmembrados ou integrados a departamentos análogos. Depende do espírito com que a idéia é atualizada.

Jornal da USP — Quais outras contribuições que o senhor pôde dar à USP?

Reale — Em 1943, tive oportunidade de, através de uma alteração legislativa, fazer com que a USP ganhasse uma autonomia que ela não tinha. A USP fora criada com o reitor vinculado ao secretário de Educação do Estado. Passei a fazer parte do Conselho Estadual Administrativo de São Paulo, que tinha a incumbência legislativa do Estado e dos municípios durante o Estado Novo. Quando chegou a esse conselho um projeto de lei relativo à USP, aproveitei para transformar a Universidade numa autarquia, diretamente ligada ao governador. Pode-se dizer que só então é que a USP passou a gozar de verdadeira autonomia.

Jornal da USP — O senhor é defensor de uma universidade pública e gratuita, não?

Reale — Não. Não estou de acordo com a universidade gratuita. Isso é um privilégio concedido àqueles que mais podem, porque se analisarmos a origem dos estudantes da USP verificaremos que eles provêm em grande parte da classe média alta, quando não da mais alta. Eles puderam freqüentar grandes colégios e, assim, enfrentaram com vantagens as provas do vestibular. Os mais pobres são obrigados a pagar seus estudos com muitos sacrifícios. Eu digo que devia ser criado um grande sistema de bolsas para atender aqueles que não têm recursos e querem freqüentar a universidade. Mas quem tem meios para pagar devia pagar. Eu não sou favorável ao ensino gratuito. Falo com experiência própria. Quando eu estudava, a Faculdade de Direito era uma instituição federal paga. Eu tinha que trabalhar para me sustentar e pagar a faculdade.

Jornal da USP — Professor, o senhor é internacionalmente conhecido por sua Teoria Tridimensional do Direito. O que diz essa doutrina?

Reale — A Teoria Tridimensional do Direito é uma interpretação da experiência jurídica sob vários prismas. Ela surgiu de uma reação contra o formalismo jurídico, que se apresentava sob três formas. Em primeiro lugar, há o formalismo legislativo, ou legislado, no sentido de que se confunde o Direito com o código, o Direito com o diploma legal. Dessa maneira, conhecer Direito se resume a interpretar as leis e aplicá-las, recebendo-se, portanto, algo já pronto e acabado sob a forma de regula júris, de norma de direito. Contra isso havia um segundo formalismo, o formalismo factual, no sentido de que se procurava nos fatos sociais uma ciência jurídica sociológica. E uma terceira orientação tinha um caráter idealista e filosófico, dando importância apenas ao mundo dos princípios e dos valores. Eu reagi contra essa tríplice orientação separada e unilateral. A minha originalidade, digamos assim, consistiu em mostrar que fato, valor e norma são elementos que se dialetizam. A minha formação dialética no campo da filosofia me ajudou a compreender que o Direito não é só norma legal, pois ela pressupõe a vida social concreta e as aspirações axiológicas, valorativas que determinam exigências para o legislador e para o juiz. Aquilo que eu chamei de fato, valor e norma representam três aspectos de uma concreção que é unitária e dinâmica, daí chamar-se Teoria Tridimensional do Direito, que é uma tomada de posição contra compreensões unilaterais da experiência jurídica.

Jornal da USP — Em que livros o senhor expõe essa teoria?

Reale — Em vários deles. Comecei a expor essa teoria em 1940, com a publicação da minha tese, editada com o título Fundamentos do Direito, que foi completada com outro livro, Teoria do Direito do Estado. Desde então fui aperfeiçoando-a e fazendo alterações. É claro que ela não surgiu de repente. Tanto que no começo eu usava a expressão "bidimensional". Em 1945 passei a usar o termo Teoria Tridimensional do Direito, que depois foi o título de um de meus livros.

Jornal da USP — Qual a influência da teoria?

Reale — No próprio projeto do Código Civil está presente essa orientação. Deixou-se de examinar apenas segundo a lei, levando em conta o condicionamento social e histórico. A Teoria Tridimensional do Direito provocou outros movimentos paralelos e mudou a mentalidade do operador do Direito. Chamo operador do Direito porque ele opera como sociólogo, como jurista, como historiador, com um complexo de aspectos e paradigmas.

Jornal da USP — O senhor liderou os trabalhos de elaboração do projeto do novo Código Civil, que está em tramitação na Câmara Federal. Quais as inovações desse novo código?

Reale — O código tem uma visão abrangente, conforme aquilo que se pode dizer a minha tendência à integralidade. É um código que não fez a unidade do Direito privado, mas fez a unidade do Direito das obrigações, civis e comerciais, e alterou a estrutura do código atual, que é muito individualista. O código atual foi elaborado no fim do século passado e promulgado em 1916. Ele reflete a situação do Brasil agrário, em que 70% da população vivia no campo. A grande mudança é a mudança de espírito. De um código individualista passamos para um código social, que leva em conta valores coletivos. É um código que tem um espírito ético de moralidade fundamental, de tal maneira que é dada ao juiz uma grande atribuição de completar e rever as situações. Tanto assim que o código dos consumidores, que leva em conta o direito da sociedade em geral, se inspirou no projeto do Código Civil. A linguagem do novo código não é rebuscada, como a de Rui Barbosa, porque código não é texto para ensinar gramática.

Jornal da USP — Quais outras novidades no novo código?

Reale — Há emendas no Senado atendendo à grande revolução que foi feita na família pela Constituição de 1988. Esta aceitou a orientação do senador Nelson Carneiro, que pregava a igualdade absoluta dos cônjuges e dos filhos. De modo que hoje no código não há diferença entre filho adulterino, incestuoso ou legítimo. São todos filhos com iguais direitos, daí resultando uma série de conseqüências. Há uma igualdade absoluta do homem e da mulher no seio da família, razão pela qual propus que ao invés de "pátrio poder" se passe a falar em "poder familiar", exercido concomitantemente pelo marido e pela mulher ou pela mulher, quando o marido deixa a mulher sozinha com os filhos e vai morar com outra, uma praga que ocorre no Brasil. Quer dizer, o novo código traduz uma revolução social, uma transformação completa. É a Teoria Tridimensional do Direito influindo na visão do direito civil.

Jornal da USP — Como o senhor vê a filosofia que se faz hoje no Brasil?

Reale — A filosofia no Brasil deu um salto muito grande. Em 1949, quando fundei o Instituto Brasileiro de Filosofia, ela era obra de pouquíssimos. Hoje é estudada em todas as universidades brasileiras. A Revista Brasileira de Filosofia, que criei há 50 anos e já soma 188 edições ininterruptas, era praticamente a única do gênero. Mas o mais importante é que se começa a pensar com a própria cabeça. Não se trata mais de um reflexo das influências recebidas. A grande crítica que eu fazia à USP é que ela estava por demais apegada aos textos, sobretudo de filosofias marxistas. Os alunos quase não tinham iniciativa de pensar com a própria cabeça e trazer algo de novo. Mas isso mesmo mudou. A Faculdade de Filosofia trouxe contribuições muito importantes na história das idéias.

Jornal da USP — O que se produz de relevante em filosofia hoje no Brasil?

Reale — A maior expressão da filosofia no Brasil é aquela que está ligada aos movimentos chamados de culturalismo e está baseada na obra de dezenas de pensadores. Ainda agora acaba de sair a segunda edição de uma obra fundamental nesse sentido, Experiência e cultura, de minha autoria.

Jornal da USP — O que é o culturalismo?

Reale — Esse movimento nasce da idéia de que não basta analisar as condições subjetivas do conhecimento, mas também as objetivas e as histórico-sociais, pois tudo aquilo que ocorre acontece num contexto de cultura. De maneira que é preciso indagar do papel da cultura na teoria do conhecimento. É por isso que um dos meus mais recentes trabalhos se chama Teoria do conhecimento e teoria da cultura. A filosofia é a visão integral da cultura, que se especializa em múltiplos setores, e a cultura não é apenas o aprimoramento do intelecto, mas o conjunto de tudo aquilo que o homem realizou no plano material e espiritual através do processo das gerações, daquilo que se chama civilização.

Jornal da USP — Professor, uma dúvida: na década de 30 o senhor participou do movimento integralista?

Reale — Sim, fui um dos líderes do integralismo. Comecei a participar em 1933 e fui secretário nacional de doutrina. O integralismo não tem nada que ver com essa imagem que a esquerda criou por aí, sobretudo a esquerda festiva. O integralismo era um grande movimento nacionalista — e nisso vai uma crítica, porque acho que o nacionalismo está superado. Mas naquela época o Brasil vivia sem ter consciência de sua própria identidade político-social-intelectual. Era um movimento nacionalista que correspondia ao nacionalismo fascista, mas com características próprias, completamente diferente. O fascismo era uma doutrina fechada e o integralismo tinha várias correntes diferentes, num diálogo muito vivo. Eu não concordava com o Plínio Salgado, o chefe nacional do integralismo, porque ele seguia a teoria social da Igreja e eu pregava uma democracia integral corporativa. E o integralismo teve o grande mérito de ser o primeiro partido nacional no Brasil. Antes só havia partidos regionais: o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Democrático Paulista (PDP), por exemplo. Nós achávamos que deveria haver um partido de âmbito nacional. Outro partido nacional era o Partido Comunista, mas este era reflexo da Rússia e era até subvencionado pelos russos. O nosso era um partido nacional nascido de nós mesmos.

Jornal da USP — Mas era um partido de tendências totalitárias.

Reale — Não. De jeito nenhum. Nem o fascismo foi totalitário. O professor Roque Spencer Maciel de Barros publicou uma obra imensa sobre o totalitarismo, O Fenômeno Totalitário, e mostrou que a Itália foi autoritária mas não totalitária, a não ser quando Mussolini acabou prisioneiro de Hitler, no fim da guerra, quando o fascismo se entregou à Alemanha. Quer uma prova? Em 1938, quando estava na Itália, tive contato com Giorgio Del Vecchio, que era judeu e reitor da Universidade de Roma. O Norberto Bobbio, de quem se fala tanto, jamais foi afastado da sua cátedra, apesar de ser judeu e nunca ter sido fascista. De maneira que essa história de confundir fascismo com nazismo é uma tapeação doutrinária.

Jornal da USP — Então fascismo é uma coisa, nazismo é outra e o integralismo no Brasil é uma terceira coisa?

Reale — É uma terceira coisa. O que há em comum é o uso da camisa. Mas nós lutamos muito para saber se tinha que usar a camisa ou não. Nós achamos que era preciso ir até o povo. O integralismo era um partido popular. Os meus companheiros eram operários. Além disso, o integralismo reuniu o que havia de mais fino na intelectualidade da época. Reuniu homens como Goffredo da Silva Teles, Roland Corbusier, Teófilo Cavalcanti, em São Paulo, San Tiago Dantas, Tiago Martins Moreira, no Rio de Janeiro, e Adonias Filho, na Bahia.

Jornal da USP — O Partido Integralista era o que se chamaria hoje de liberal?

Reale — Não. Liberal não era. Na época, liberalismo se confundia com conservantismo. Liberal social sou eu agora, porque o liberalismo tem um outro sentido, mais amplo, mais aberto. Na época, o liberalismo era o nome postiço de um conservador. Nós éramos contra o liberalismo formal, que não resolvia nenhum problema social, só problemas jurídicos e políticos, sem dar importância à problemática social do país. O integralismo era um movimento social.

Jornal da USP — Em 1969, o senhor foi nomeado pelo presidente Costa e Silva para formar a comissão que reviu a Constituição de 1967, que produziu um texto arbitrário.

Reale — Não. Não é isso não. A história é mais complicada. Leia sobre isso no segundo tomo das minhas memórias. O presidente Costa e Silva morreu repentinamente logo depois de a comissão ter feito a revisão, de maneira que a Constituição de 1969 aproveitou o nosso trabalho. Mas ela foi feita por sucessores do Costa e Silva, não por nós. E essa Constituição de 1969 tem muita coisa boa. Não vamos confundir essa Constituição com os Atos Institucionais. Eu escrevi um artigo no Estadão mostrando que a Constituição de 1969, que procurei até rever junto com outros no fim da época militar, era uma Constituição que tinha alguns valores, mas não tinha nenhuma força porque estava subordinada aos Atos Institucionais, esses sim, violentos, arbitrários. A Constituição não mandava nada. Quem mandava eram os Atos Institucionais. Os Atos é que eram a verdadeira Constituição. Há muita ignorância a respeito do assunto.

Jornal da USP — Em 1974 o presidente Médici nomeou o senhor para o Conselho Federal de Cultura.

Reale — Mas sabe com quem eu fui nomeado? Com Afonso Arinos de Melo Franco, Gylberto Freire, Pedro Calmon, Raymundo Faoro e outros. Quem dera o governo atual fizesse um conselho com homens dessa estatura. O conselho nunca deu importância ao governo. Tinha independência. Homens como Freire, Afonso Arinos, Pedro Calmon e eu não somos subordinados a nada. Somos subordinados a nossas idéias e às nossas convicções. De maneira que corrija aí a sua ligação, que está errada.

Jornal da USP — É que eu fiquei com a impressão de que talvez o senhor tivesse colaborado com o regime militar mais do que se deveria esperar de um grande luminar do Direito e de um professor da USP.

Reale — Não. Eu só colaborei no Conselho Federal de Cultura e no Conselho Administrativo do Estado. Nesse conselho todo mundo colaborava. Quem não colaborava era só a esquerda. Todo mundo colaborava com o regime militar. Colaborava no sentido de realizar obras culturais. Mas além da obra cultural não havia colaboração nenhuma.

Jornal da USP — Professor, o senhor se formou pela Faculdade de Direito em 1934, ano da fundação da USP. Foi professor e, por duas vezes, reitor. O que o senhor citaria como suas grandes realizações nessa longa carreira?

Miguel Reale — Quando exerci o cargo de reitor pela primeira vez, em 1949, havia uma desigualdade entre os professores, que estavam divididos em três categorias, com três faixas salariais. Isso era um absurdo. Com o apoio do Conselho Universitário, equiparei os salários de todos os professores. Parece-me que essa foi uma contribuição importante, porque dava nascimento à USP como uma unidade orgânica. Nessa ocasião, ocorreu-me a idéia de que, no Brasil, a universidade não pode se limitar a dar aulas e realizar conferências e cursos. Por isso passei a promover serviços externos, sempre de natureza cultural. Era o início das atividades de prestação de serviços à comunidade, que constitui hoje a terceira finalidade do instituto universitário.

Jornal da USP — E na sua segunda gestão na Reitoria, no início dos anos 70?

Reale — Nesse segundo mandato, a minha atuação foi muito complexa. A USP implantou uma profunda reforma destinada a suprimir as cátedras e substituí-las por departamentos. Ela previa também a reorganização das unidades da USP, com a distinção fundamental entre institutos, com maior cunho de pesquisa, e faculdades, destinadas a uma atuação, digamos, mais profissional. A antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi desmembrada. Foi muito importante esse desmembramento porque a Faculdade de Filosofia era reflexo de um enciclopedismo positivista. Ela estava perdida num conjunto disforme, pois o que tem a ver química com matemática, por exemplo? As ciências positivas saíram da faculdade e compuseram novas unidades autônomas. Naturalmente isso se fez com muita resistência.

Jornal da USP — Que tipo de resistência?

Reale — Havia muitos professores que não estavam de acordo com a reforma. Uma resistência muito grande foi oposta à supressão das cátedras. Antigamente o catedrático era o "dono" da Universidade e tinha um auxiliar que ficava na dependência dele. De acordo com a reforma aprovada, instituí as carreiras e coloquei nos departamentos mais de 4 mil professores. A criação dos institutos, como o ICB — Instituto de Ciências Biomédicas, tirava da Faculdade de Medicina o curso de anatomia e outras funções. Chegou ao ponto de haver até um movimento separatista, promovido pelos médicos e professores da Faculdade de Medicina, que queriam transformá-la numa faculdade autônoma. Foi uma grande dificuldade afrontar essa resistência e superá-la.

Jornal da USP — Hoje se discute que essa estrutura departamental está superada.

Reale — Quais são os argumentos que aduzem? Os departamentos foram criados da maneira que era possível na época. O que houve foi uma falta de adaptação ao espírito dos departamentos. Há muitas vaidades que desaparecem nos departamentos, de tal maneira que os professores se impõem pela sua cultura e pela sua dedicação. Mas há professores que querem o cargo, querem, no fundo, restabelecer de outras formas as antigas cátedras, numa tradição de mandonismo que é bem compatível com a tradição brasileira. Os departamentos têm de ser aperfeiçoados. Eles podem ser, às vezes, até desmembrados ou integrados a departamentos análogos. Depende do espírito com que a idéia é atualizada.

Jornal da USP — Quais outras contribuições que o senhor pôde dar à USP?

Reale — Em 1943, tive oportunidade de, através de uma alteração legislativa, fazer com que a USP ganhasse uma autonomia que ela não tinha. A USP fora criada com o reitor vinculado ao secretário de Educação do Estado. Passei a fazer parte do Conselho Estadual Administrativo de São Paulo, que tinha a incumbência legislativa do Estado e dos municípios durante o Estado Novo. Quando chegou a esse conselho um projeto de lei relativo à USP, aproveitei para transformar a Universidade numa autarquia, diretamente ligada ao governador. Pode-se dizer que só então é que a USP passou a gozar de verdadeira autonomia.

Jornal da USP — O senhor é defensor de uma universidade pública e gratuita, não?

Reale — Não. Não estou de acordo com a universidade gratuita. Isso é um privilégio concedido àqueles que mais podem, porque se analisarmos a origem dos estudantes da USP verificaremos que eles provêm em grande parte da classe média alta, quando não da mais alta. Eles puderam freqüentar grandes colégios e, assim, enfrentaram com vantagens as provas do vestibular. Os mais pobres são obrigados a pagar seus estudos com muitos sacrifícios. Eu digo que devia ser criado um grande sistema de bolsas para atender aqueles que não têm recursos e querem freqüentar a universidade. Mas quem tem meios para pagar devia pagar. Eu não sou favorável ao ensino gratuito. Falo com experiência própria. Quando eu estudava, a Faculdade de Direito era uma instituição federal paga. Eu tinha que trabalhar para me sustentar e pagar a faculdade.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

O centenário de Plínio Salgado

Por Miguel Reale


O silêncio da imprensa e de todos os meios de comunicação a respeito do centenário de nascimento de Plínio Salgado demonstra quanto pode a força do preconceito ideológico, capaz de obscurecer o real valor de nossos homens mais representativos.

Porque Plínio Salgado, visto geralmente apenas sob o prisma da falsa "vulgata integralista" disseminada por esquerdistas de todos os naipes, reuniu, como bem poucas personalidades, o que ha de mais característico, positiva e negativamente, na cultura brasileira.

Em primeiro lugar, como tantos outros nossos patrícios eminentes, ele não cultivou seu espírito nos bancos universitários, mas como autodidata, influenciado por eventuais encontros intelectuais. Isso não obstante, acabou assemelhando notável saber nos domínios da filosofia, da ciência política, da sociologia e das letras.

A sua formação inicial levou-o naturalmente ao jornalismo, merecendo lembrança o fato de que foi Menotti Del Picchia quem teve a perspicácia de transferi-lo da revisão do Correio Paulistano para o quadro dos articulistas, aonde iria se revelar um dos mais lúcidos intérpretes da vida política nacional, apontando para novos rumos, isto, paradoxalmente, nas páginas do jornal oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), máxima expressão da tradição conservadora.

Ainda não foi feito um estudo sobre Plínio Salgado jornalista, desde o Correio até A Ofensiva, passando pelo magnífico "intermezzo" de A Razão.

Quando tal pesquisa for elaborada, ter-se-á a imagem de um dos mais completos e penetrantes mestres do jornalismo pátrio. A repercussão de suas idéias foi tão grande que, quando o capitão João Alberto assumiu a interventoria de São Paulo, após a Revolução de 1930, fez questão de conhecer Plínio Salgado, cujos artigos eram lidos, em Buenos Aires, com entusiasmo pelos antigos componentes da Coluna Prestes! Por esse motivo foi confiada a Plínio Salgado a redação do Manifesto da "Legião Revolucionária" de Miguel Costa, fato este que se procura ocultar.

Foi por divergir da corrente marxista, que passou a prevalecer nas hostes revolucionárias, que Plínio lançou o tão falado e hoje pouco conhecido, Manifesto de Outubro, documento básico da Ação Integralista Brasileira. Quem, sem mente prevenida, examinar esta proclamação, lançada em 1932, verá, com facilidade, que, mais do que se inspirar no fascismo (do nazismo não há o que falar, pois, na época, pouco significava), o meu conterrâneo (somos ambos de São Bento do Sapucaí-SP) se baseava, quanto à compreensão do Brasil, nos ensinamentos de Alberto Torres, Euclides da Cunha e Oliveira Viana; em política, inspirava-se na teoria dos "governos fortes" então aceita até mesmo por grandes mestres da democracia, como Churchill; e, em matéria social, seguia a "doutrina social" da Igreja Católica.

Nota-se, aliás, que ao entrar para Ação Integralista, em 1933, desde logo marquei minha posição pessoal, preferindo desenvolver as teses do sindicalismo oi do corporativismo democrático, exposto, entre outros, por Mirkine Guétzevitch, o que demonstra que havia várias vertentes no Integralismo erroneamente visto como uma ideologia maciça. Pois bem, apesar das divergências, foi Plínio quem recomendou meu livro O Estado Moderno a José Olympio, que estava começando em São Paulo sua estupenda carreira de editor, o que demonstra o espírito de tolerância do líder integralista, que também soube respeitar as idéias divergentes de outros companheiros, como Gustavo Barroso, San Tiago Dantas ou Olbiano de Melo...

A meu ver, a vultosa bibliografia de Plínio salgado, objeto de bem raras analises serenas, representa um dos mais significativos filões do pensamento político brasileiro, com páginas duradouras, com as de Psicologia da Revolução, que transcendem as conjunturas ou os motivos que episodicamente as inspiram.

Mas acima de suas concepções políticas, cujo estudo demandaria longas considerações, inclusive, inclusive no plano da Política Comparada, o que desejo ressaltar, neste artigo ditado tanto pela saudade como pelo dever da verdade são os altos méritos de Plínio Salgado como escritor sempre atento às renovações literárias, como o demonstrou com sua participação na Semana da Arte Moderna, fato que também geralmente se oculta.

No entanto, seu romance O Estrangeiro, de 1926, é fruto magnífico da "Semana", tendo sido recebido com imenso entusiasmo por críticos rigorosos como Tristão de Athayde e Agripino Grieco, e por escritores consagrados como Monteiro Lobato. É obra que não se notabiliza apenas pelos novos valores literários revelados num estilo imagético e fotográfico, mas também por ter sido o primeiro romance de cunho social publicado no Brasil, anos antes de A Bagaceira de José Américo de Almeida (1928) ou de O Quinze de Rachel de Queiroz (1930).

Nesse seu melhor romance surge São Paulo com toda a riqueza de seus contrastes étnico-culturais com classes sociais que decaem e outras que emergem, até se converter numa civilização própria, marcada pela unidade pluridimensional de seus bens existenciais. Não exagero afirmando que nenhum livro revela tão vivamente o amanhecer da "cultura paulista" enquanto, como num coro grego, se ouvem comentários de Ivan, a voz que vem de fora. Por outro lado também em 1928, Plínio publicou a Anta e o Curupira, escrita por ele em parceria com Cassiano Ricardo e Menottí del Picchia.

O Esperado, Cavaleiro de Itararé e a Voz do Oeste são outros seus romances de inegável valor estético, muito embora até certo ponto os comprometa literalmente o deliberado propósito de fixar novos rumos políticos sociais, visando atingir a tão falada "identidade nacional", apresentada por Plínio como resultado de uma revolução cultural embebida de nossas próprias circunstâncias, e não em função de figurinos de Moscou, de Roma ou de Nova York.

Lugar à parte merece sua Vida de Jesus, onde os valores do cristianismo são captados numa visão artística tão espontânea e expressiva que prende e seduz também os que não são crentes, projetando-se reconhecidamente na angiologia universal.

Não alimento a esperança de que meu pronunciamento possa fazer justiça ao grande paulista e brasileiro que foi Plínio Salgado, pois só o tempo o fará; mas ele por certo pensava, como Siqueira Campos, que tanto admirava, que "da Pátria nada se espera, nem mesmo compreensão".


(Artigo publicado em "O Estado de São Paulo" a 25 de fevereiro de 1995)